A proposta desta reflexão é apresentar alguns aspectos básicos na compreensão de como a espiritualidade e o meio ambiente se entrelaçam nas relações humanas e assim fomentar o debate.
Quando pensamos na relação entre espiritualidade e meio ambiente muitas vezes tendemos a correlacionar atividades de cunho espiritualista com paisagens consideradas agradáveis. Uma ideia bastante comum é imaginar uma cena de meditação em um parque ou um belo jardim. Indo um pouco mais a fundo, pode vir à mente os rituais xamânicos realizados pelos povos indígenas em meio à floresta. Mas, quando pensamos em expressões espirituais, místicas e religiosas praticadas no meio urbano como ficam estas questões?
Meio ambiente não é o que está fora
Podemos entender o meio ambiente como o conjunto de condições, leis, influencias e interações de ordem física, química, biológica, social, cultural e urbanística, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas¹. É um sistema formado por elementos naturais e artificiais relacionados entre si e que existem num determinado local e momento.
Mas pra além das definições técnicas, se faz necessária uma compreensão mais integrativa. É preciso entender primeiramente que o ser humano e todas as suas criações não estão separados do meio ambiente e que este compreende cada indivíduo, cada grupo, cada sociedade, cada país e assim por diante. O meio ambiente abrange tudo o que nos cerca e todas as relações que estabelecemos.
Para aprofundar nossa visão sobre o tema, me parece sensato evocar o conceito de Ecologia Profunda, proposto pelo filósofo e ecologista norueguês Arne Næss, que argumenta que o meio ambiente se caracteriza pelo equilíbrio sutil de inter-relações complexas em que a existência de um organismo depende da existência de outros dentro dos ecossistemas. O princípio central da ecologia profunda é a crença de que o ambiente como um todo deve ser respeitado e considerado como tendo certos direitos inalienáveis de viver e florescer.
Essa perspectiva de enxergar as relações ambientais defende que a natureza possui um valor intrínseco, independente de seu valor de uso pelo ser humano, prezando pela harmonia das sociedades humanas com o meio ambiente e pela igualdade entre as espécies. Neste sentido ao mesmo tempo que propõe que as relação homem-natureza se deem de forma ética, se contrapõe-se a visão de que o ser humano detém o domínio da natureza e que ela é apenas um recurso para satisfação de suas necessidades.
Relação homem-ambiente e a cultura
É a partir da relação e interação homem-ambiente que se estabeleceram os modos de vida das populações humanas antigas, o que significa dizer que todos os sistemas de crenças, valores e leis considerados primitivos refletiam com exatidão a relação que aquela sociedade desenvolvia com o meio ao seu redor, ou ainda que as religiões e filosofias da antiguidade não tinham outro foco senão harmonizar o homem com a natureza e a sociedade com o cosmos. O sucesso de uma sociedade estava estritamente ligado a harmonia dessa relação homem-natureza, pois saber utilizar os recursos naturais disponíveis da melhor forma era vital para a sobrevivência do grupo. A falha ao se adaptar ao seu meio foi a causa da destruição de diversas sociedades antigas.
A humanidade da antiguidade aprendeu a observar, comparar, compreender e experimentar a natureza ao seu redor e, por analogia, aprendeu a fazer o mesmo seus próprios processos psíquicos e sociais. Os ensinamentos herméticos² nos explicam este processo através da “Lei da Correspondência”, que nos ensina que “o que está encima é como o que está embaixo, e o que está fora é como o que está dentro”.
A natureza e o Sagrado
O meio ambiente teve (e continua tendo) um papel significativo na construção de todos os sistemas de crenças e de práticas espirituais, das mais antigas às mais modernas. Desde as primeiras interpretações sobre o sagrado, marcadas pelo animismo e panteísmo nas populações consideradas primitivas, até os modernos sistemas de compreensão da transcendência do mundo moderno, nas quais tanto a ciência quanto a magia buscam explicações racionais e verificáveis para os fatos, é impossível afirmar que estas construções não passam pela percepção ambiental de seus praticantes.
Com a modificação da relação da humanidade com o meio-ambiente se ao longo do tempo, a relação entre espiritualidade e meio-ambiente também se alterou. Da dependência passiva das forças naturais ao desenvolvimento de tecnologias que nos permitissem alterar o meio ambiente ao nosso bel-prazer (não sem consequências), podemos perceber que a humanidade se encontra cada vez menos conectada com os ciclos naturais do planeta.
Um passo bastante significativo nessa mudança de relação do sagrado com o meio ambiente foi a consolidação da moral-judaico cristã, principalmente através da igreja católica, como grande orientadora do comportamento da sociedade ocidental. Diversos elementos presentes nesta forma de interpretar o mundo marcaram o pensamento ambiental da sociedade, principalmente no campo espiritual, entre eles a perseguição às crenças pagãs, em geral mais alicerçadas na relação com a natureza.
O próprio berço das culturas e religiões abraâmicas se caracterizava na antiguidade como um ambiente inóspito, que exigia que qualquer grupo humano que ali se estabelecia desenvolvesse um código moral igualmente restritivo, a fim de garantir a sobrevivência do grupo. Assim, a cultura daquelas sociedades se estabeleceu na perspectiva de dominação sobre as adversidades ambientais e, por consequência, da psique e do comportamento humanos. Não faria nenhum sentido que neste ambiente se desenvolvesse uma cultura tão integrada à constante disponibilização de recursos naturais, portanto pouco restritiva, como a dos indígenas brasileiros, por exemplo. Nesse contexto a noção de natureza exuberante estaria ligada ao Paraíso, de onde o homem foi expulso por sua transgressão a Deus (o que justifica a condenação a um ambiente inóspito como espiação dos pecados) e recompensa pela boa conduta em vida.
Somando a este processo a consolidação do processo de produção capitalista, a setorialização mais intensa da sociedade, e a mudança da maioria da população para ambientes urbanos, o contato com a natureza foi se tornando menos presente na vida humana.
De certa forma, esse afastamento da sociedade com o meio ambiente nas sociedades mais recentes, também impactou em novas formas de espiritualidades que muitas vezes não se veem mais como reflexo das relações homem-natureza.
Na próxima parte desta reflexão pretendo trazer alguns apontamentos de resgate da relação da espiritualidade com o meio ambiente.
Até lá
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1. Definição dada pela Resolução CONAMA 306/2002.
2. O Hermetismo será abordado futuramente com mais profundidade. De forma resumida, podemos entender o Hermetismo como um conjunto de doutrinas simultaneamente filosóficas e místicas, proveniente do antigo Egito e atribuído a Hermes Trismegisto. Através do estudo e da prática da filosofia oculta e da magia pretende possibilitar a seus estudantes a evolução e expansão da consciência humana, penetrando assim nos mais profundos mistérios da consciência divina e da criação.
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