quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

O Ciclo das águas e as Yabás


No começo de tudo estava a terra, ainda em ebulição. O vapor de água saído dos vulcões em erupção se condensou na atmosfera e fez a chuva. Esta, caindo dos céus, ora se entranhava na terra, ora escorria por cima dela, até encontrar os locais onde pudesse se acalentar. Formaram-se os rios, as lagoas e, por fim, o mar. Estas águas, sob o calor do sol, se transformam novamente em vapor, subindo aos céus e reiniciando o ciclo.

Das águas brotaram a vida. Ela é a fonte de tudo o que vive na terra. Sem ela, só é possível a escassez. As Yabás, divinas Mães d'água, compartilham o mistério do sagrado feminino, cada uma em sua faceta.



Iansã

Força impulsionadora, expansiva, disciplinada ao mesmo tempo intempestiva
Senhora do Quarto Crescente, Iansã guarda os segredos da Menina e da Guerreira
Condutora das nuvens de chuva, é ela quem direciona o que receberá, ou não, emoção e sentimento
Dona dos raios, destrói tudo o que não é essencial, transmutando pelo fogo, para o novo renasça
Com sua tempestade, agita o que está parado, derruba o que não tem raízes, revela o que está oculto
Com sua espada e escudo em mãos, nos ensina a lutar por tudo o que acreditamos ser o certo
Iansã é a menina dos Olhos de Oxum, a quem tem como modelo e de quem não pode se separar por muito tempo.

Oxum

Força animadora, amorosa, delicada, vaidosa, ardilosa e caprichosa
Senhora da Lua Cheia, Oxum guarda os segredos da Jovem e da Amante
Conduz as águas dos rios para que possam matar a sede, abrasar o calor e regar as plantações,
Na cachoeira, suas águas até então recatadas, mostram sua força e beleza, se sobressaindo à terra
Dona dos metais e das pedras preciosas, mostra que a beleza da vida precisa ser apreciada
Com seu espelho apontado voltado para dentro, nos ensina a olhar pro mais profundo de nós e a amar tudo o que vemos nele refletido.
Oxum gesta tudo o que existe para que Iemanjá possa trazer ao mundo

Iemanjá

Força acolhedora, cuidadosa, receptiva, tranquilizadora, despojada de si e despretensiosa
Senhora do Quarto Minguante, Iemanjá guarda os segredos da Mulher e da Esposa
Nas praias, aguarda ansiosa para receber seus filhos que retornam para visitá-la
No mar, recebe as águas provenientes de todas as fontes, e as mescla, sem fazer distinção
Mãe de todos os peixes, a quem criou para que sua casa nunca esteja vazia e sempre tenha a quem cuidar
Com seu espelho apontado para para fora, nos ensina a olhar aos demais como realmente são e acolher tudo o que ali esteja refletido
Iemanjá acolhe os filhos de Nanã até que essa possa recebê-los novamente

Nanã

Força disciplinadora, paciente, restritiva, castradora, mantenedora e preservadora
Senhora da Lua Nova, Nanã guarda os segredos da Anciã e da Feiticeira
Nos pântanos decompõe o que já não tem mais vida, e disponibiliza os nutrientes para serem reaproveitados
Nos manguezais, acolhe a vida ainda frágil, que depois seguirá para o mar
Suas águas subterrâneas são os reservatórios que abastecem a terra na ausência de Chuva
Suas cavernas nos ensinam que com o tempo as águas podem perfurar até a mais dura rocha
Nanã, senhora da noite e da magia, é quem ensina Iansã a cobrir o sol para despejar suas águas na terra.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

A Umbanda e a identidade nacional

Tendo sua origem no sincretismo de diversos sistemas religiosos presentes em solo nacional (catolicismo, espiritismo, cultos de Nação e cultos indígenas) e, em grande medida, constituintes da identidade religiosa brasileira, a Umbanda acaba por representar em sua estrutura arquetípica as diversas faces do que é ser brasileiro.

Os primeiros arquétipos apresentados na Umbanda são representações de seus povos formadores (ameríndios, africanos e europeus), sendo que com o passar do tempo a matriz arquetípica se ampliou para comportar representações dos diversos grupos que compõe a brasilidade regional.



Cabe também um destaque para regiões com grande fluxo migratório, como o estado de São Paulo, onde todos estes matizes regionais se misturam. Afinal, onde mais o migrante nordestino faria sentido enquanto arquétipo (linha dos baianos) que o local para o qual destinou-se a migração?

Foram agregados ainda, uma gama de outros matizes místicos, filosóficos e religiosos estrangeiros (principalmente das tradições orientais) a medida que estes foram integrados ao contexto religioso nacional, dando à Umbanda uma característica marcante: a adaptabilidade sociocultural

Assim, a estrutura arquetípica encontrada nas umbandas do norte, é diferente daquela encontrada no sul. Mesmo entre as diferentes escolas umbandistas, também há variações, numa mesma região geográfica.

Precisamos entender como o imaginário popular concebe as representações arquetípicas para podermos entender porque os boiadeiros do sul são gaúchos pampeiros, enquanto no nordeste são sertanejos e no centro-oeste são os vaqueiros do pantanal, cada qual com seu conjunto de símbolos e modos de vida. Da mesma forma, os ribeirinhos da amazônia, os caiçaras do sudeste e os jangadeiros do nordeste representam diferentes formas de ser povo da água, ou simplesmente marinheiros.

Pra entender a Umbanda é necessário antes de tudo entender o Brasil, sua história, sua identidade, seus múltiplos universos. Mas não apenas os aspectos acadêmicos dessa discussão, mas o conhecimento profundo e cotidiano da brasilidade subjugada, pois o traço que une todos os arquétipos é a não centralidade na história oficial; povos periféricos, excluídos e que precisaram lutar para ter um lugar ao sol na história da nação.

Dessa forma, entendemos que lutar contra as desigualdades, se colocando a favor dos humildes e desamparados é um conceito chave para a Umbanda, presente desde sua fundação e bastante presente em sua estrutura de trabalho.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Espelhos d'água


Dentro do mar tem rio. Dentro de mim tem o quê?*

Na mitologia Iorubana, fonte que alimenta tanto a umbanda quanto o candomblé Ketu, o rio é domínio de Oxum e o mar é domínio de Iemanjá. Duas orixás ligadas aos mistérios aquáticos, à maternidade e também à vaidade. Ambas carregam seu precioso Abebê, o espelho com o qual refletem o que precisa ser mostrado. Cada qual a sua maneira.



Oxum carrega o espelho voltado para si, para que possa ver seu rosto. Contempla sua existência em toda sua complexidade, com seus defeitos e virtudes. Iemanjá carrega o espelho voltado para quem lhe olha, escondendo seu próprio rosto. Ela reflete o mais profundo da alma e entrega de volta ao olhar alheio.

Enquanto Oxum nos ensina a nos observar, nos conhecer e, por fim, nos amar, querendo bem tudo o que temos dentro de nós, Iemanjá nos ensina a observar, conhecer e amar aos demais e a acolher tudo aquilo que está além de nós.

Assim, como as águas dos rios seguem naturalmente em direção ao mar, o amor próprio nos auxilia, naturalmente, a amar os que estão ao nosso redor e a lhes auxiliar a ver o que tem de melhor em si mesmos.

Mas, se dentro do mar tem rio, em todo destino existe algo da jornada. Talvez um resquício do caminho percorrido, talvez indícios do novo caminho que se inicia. Talvez um e outro não sejam duas coisas distintas. Pois todo fim é também um recomeço.

Assim, a sagrada dança das água, em seu eterno ciclo, nos lembra que o precioso Abebê das Yabás reflete, sem julgamentos, o que se quer nele ver. As duas posições do espelho, hora apontando pra si, hora para os demais, são igualmente necessárias para compreender o todo. Cabe a cada um que acessa este mistério apontar o espelho para o que deseja enxergar naquele momento.
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*Trecho da canção "Beira-mar", composta por Roberto Mendes e Capinan

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

O amor como instrumento de elevação espiritual (Parte II)

Este texto é a continuação da reflexão que pode ser acessada clicando aqui: O amor como instrumento de elevação espiritual (Parte I)



Entender o amor como instrumento de elevação espiritual exige, antes de tudo, que nos debrucemos um pouco mais sobre o que significa estar espiritualmente elevado, portanto sobre o que é esperado pelas forças superiores de cada ser humano em suas experiências encarnatórias. 

As primeiras pistas sobre isso nos são dadas pelas diversas doutrinas religiosas. As religiões tem, em geral, por fundamento essencial fazer o religamento da humanidade com a grande força criadora do universo, Deus. Em quase todas as teogonias e cosmogonias dos diversos sistemas mitológico-religiosos, este ser criador primordial pertence à uma dimensão muito afastada da humanidade. Muitas vezes esta separação é fruto da degradação da humanidade após a criação, não mais sendo digna de contemplar a verdadeira face de Deus. 

Mas, se Deus se manifesta através do amor, como podemos ter como ponto de partida para nossas concepções espirituais, que nos elevariam de nossa condição mundana, um conceito tão pouco amoroso? 

A separação entre a humanidade e Deus (sua origem primeira) não é, necessariamente, uma queda, um castigo ou maldição. Talvez a melhor forma de enxergar este processo seja como um fenômeno natural, como parte da criação do universo, resultante da própria natureza da criação divina e, de certa forma, como expressão da função dos seres humanos nos planos da criação. 

O mundo não foi feito para os seres humanos desfrutarem ao seu bel-prazer, ao contrário do que afirmam muitas das escrituras consideradas sagradas. O mundo foi feito por e para Deus, através de sua natureza exploratória. 

Nós, seres humanos, somos simplesmente (com as dores e delícias que este conceito evoca) uma forma de Deus conhecer e experienciar a totalidade de sua criação, explorando ao ponto máximo suas próprias leis, equações e algoritmos, conhecendo cada possível interação entre os inumeráveis elementos componentes do universo, reunindo todas as possibilidades de manifestação em si. Em outras palavras, a trajetória da humanidade é reflexo da própria trajetória divina de autoconhecimento e auto aprimoramento. 

A “queda” do Homem, embora possa nos trazer um sentimento de isolamento, frustração e falta de sentido (o que muitas vezes nos faz desviar da tarefa de reconexão com Deus para nos conectarmos a outras fontes de sentido arbitrárias), é um mal necessário para o cumprimento de nossa função na criação, ou talvez um efeito colateral deste processo. 

Se pensarmos a partir de um ponto de vista universalista, nos enxergando como partes integrantes do grande plano ou sistema divino, essa dor não tem razão de existir. Ela existe apenas enquanto experiencia de indivíduos e dos grupos de indivíduos, que, ao não compreenderem seu papel na criação, projeta para si e em si um sentimento de solidão e vazio. A falta de sentido na vida, tema tão recorrente na história humana e que diz muito mais sobre nossa percepção do fato do que sobre o fato em si. 

Saber que somos uma ferramenta divina é, ao contrário do que muitos poderiam pensar, extremamente libertador. A falsa ideia que os humanos são a peça central e insubstituível na criação de Deus, e que de alguma forma nós somos a razão de tudo o que foi criado, ao não ser correspondida pelas situações da vida, causa este sentimento de não encontrar seu lugar no mundo, de não saber ou não ser capaz de viver a vida como deveria. Por que, inevitavelmente, nos depararemos com a fragilidade dessa ideia antropocentrada extremista. 

Se somos parte de um infinito sistema emanado a partir de Deus, assim como as galáxias e as estrelas, os anjos e as divindades, as plantas e os animais, os átomos e as partículas, o melhor que podemos fazer, como boas engrenagens do sistema divino, é cumprirmos nossa função específica, ou seja, experienciar a criação em sua amplitude. Então começaremos a compreender que todos somos parte dos planos divinos e, por que não, do próprio Deus, e todos estamos conectados numa longa teia de correlações infinitas. E saberemos que o amor é a essência do universo. 

Neste ponto é onde podemos começar a correlacionar as coisas. Amor e elevação espiritual estão intimamente ligados, porque a segunda é a extensão natural do primeiro. Se o amor é a força anímica usada por Deus para a manifestação de sua criação e nossa missão é exatamente experienciar a totalidade desta mesma criação, podemos entender que nossa missão divina só pode ser atingida através do amor. 

Na terceira e última parte dessa reflexão pretendo apresentar mais algumas pistas de como amor e elevação espiritual se relacionam. 

Até lá.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Breve história da fundação da Umbanda


No dia 15 de novembro de 1908, na sede da Federação Espírita de Niterói, um jovem de 17 anos chamado Zélio Fernandino de Moraes, ao subverter as regras do ritual que seria realizado naquela noite, acabaria por dar inicio uma nova religião que viria a ser chamada de Umbanda.


Ainda na adolescência, o jovem Zélio de Moraes começou a preocupar sua família ao começar a apresentar um comportamento estranho. Por vezes sua personalidade mudava drasticamente, ora falando e se comportando como um indígena, ora como um senhor de muita idade.

Este comportamento fez com que seus pais buscassem ajuda médica para resolver o problema. Porém, após diversas consultas com psiquiatras, não foi identificada a causa para este comportamento, sendo que os médicos afirmavam que, do ponto de vista neurológico, não havia nada de errado com o jovem.

Orientados por sua formação católica, os pais de Zélio o levaram a um padre para que fosse exorcizado, acreditando ser uma manifestação espiritual negativa. Da mesma forma que acontecera com os médicos, os padres que analisaram o jovem não encontraram indícios de possessão demoníaca, embora também não pudessem explicar aqueles estranhos fenômenos.

Por fim, o jovem Zélio foi encaminhado para a Federação Espírita de sua cidade, em busca de explicações para o que acontecia. Ao chegar na sede da Federação, Zélio foi convidado a se sentar na mesa de trabalho, mas logo se levantou, contrariando as orientações ritualísticas da casa, e disse faltar algo naquela mesa. Foi até o jardim e trouxe uma rosa branca, que depositou sobre a mesa¹.

Dando-se início aos trabalhos, começaram a manifestar-se nos médiuns espíritos com fala enrolada, que se apresentaram como índios e antigos escravos africanos, que imediatamente foram comandados pelo dirigente da casa para se retirarem dos trabalhos, devido ao seu suposto atraso cultural.

É então que Zélio, assumindo a personalidade indígena que lhe era recorrente se levante e pergunta ao Presidente da Federação: “por que expulsam estes espíritos sem nem lhes escutar as palavras que tem a oferecer?”. Questionou ainda o por que os consideravam atrasados devido às suas cores e posições sociais enquanto vivos”.

Na tentativa de por fim ao episódio, um dos responsáveis pela mesa questionou o espírito desconhecido incorporado em Zélio:Afinal, porque o irmão fala nesses termos, pretendendo que esta mesa aceite a manifestação de espíritos que, pelo grau de cultura que tiveram quando encarnados, são claramente atrasados?

A resposta manifestada através de Zélio foi: Se julgam atrasados os espíritos de pretos e índios, devo dizer que amanhã estarei na casa deste aparelho (Zélio), para dar início a um culto em que estes pretos e índios poderão dar sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou. Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos encarnados e desencarnados”.

O médium clarividente que acompanhava a sessão² então lhe questionou: “Por que fala como se fosse um deles se eu lhe vejo manifestado com vestes sacerdotais? E qual é o seu nome, irmão?”

A resposta a este questionamento foi: “O que vê em mim são restos de uma encarnação na qual fui o Frei Gabriel de Malagrida, queimado na fogueira da inquisição como herege. Mas em minha última encarnação, Deus me deu a graça de ter encarnado como índio brasileiro. E se querem saber meu nome, que seja este, Caboclo das 7 Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim”.



No dia seguinte, a casa de Zélio recebeu membros da Federação Espírita, parentes, amigos e uma multidão de desconhecidos, curiosos para presenciar o que aconteceria. Ás 20h o Caboclo das 7 Encruzilhadas se manifestou em Zélio e declarou que a partir daquele momento, uma nova religião se iniciava, na qual os espíritos de índios e de negros escravos poderiam trabalhar ajudando seus irmãos encarnados, independentemente da sua cor ou posição social. O grupo fundado naquela noite pelo Caboclo das 7 Encruzilhadas recebeu o nome de Tenda Nossa Senhora da Piedade, pois assim como Maria acolheu a Jesus mesmo sabendo o grande sacrifício que lhe seria exigido, a Tenda acolheria aos que a ela recorressem em busca de ajuda, sem qualquer julgamento.

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1. Muitos historiadores e estudiosos de umbanda afirmam que este momento marca a diferenciação da Umbanda do Espiritismo, pelo uso de elementos físicos para serem energeticamente manipulados.

2. Naquela época era parte das sessões espiritas sempre ter um médium clarividente nas sessões para poder confirmar a manifestação dos espíritos e se estes aparentavam como diziam ser.